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Cátedra Lídia Jorge na Universidade de Massachusetts Amherst
 

A Direção Regional de Cultura do Algarve congratula-se com mais uma expressão de reconhecimento internacional da escritora Lídia Jorge, com a inauguração de mais uma cátedra com o seu nome, desta vez, na Universidade de Massachusetts Amherst, nos Estados Unidos da América, e saúda a autora.


Em 2020, a Universidade de Genebra criou a primeira cátedra com o seu nome, tendo organizado um primeiro colóquio inaugural, intitulado “O poder da imagem na obra de Lídia Jorge”, a 15 e 16 de Setembro de 2021.

Enquanto o dia de amanhã não nos traz as suas palavras, deixamos aqui as que proferiu naquele dia, na sua belíssima intervenção reflexiva, “As novas constelações” (a totalidade pode ser lida aqui).

 

“(…) A cátedra que os senhores estão a inaugurar tem o meu nome. Mas, ainda que muito me honre, eu louvo este projecto pelo facto de através dele se reconhecer a importância que tem a promoção das culturas lusófonas e da Língua Portuguesa, aqui, num país que ocupa um lugar muito particular no coração da Europa. As culturas fazem entre si transfusões de sangue e são tão mais vivas quanto mais trocas proporcionam entre si. A Suíça apresenta um legado que chega vivamente até nós – Basta evocar o ideário político de Benjamin Constant, ou a figura irradiante, fundadora do pensamento moderno de Jean-Jacques Rousseau. Hemarn Hesse ou Blaise Cendras.  Mas, pelo meu lado, desde há uns anos, quando penso na Suíça, ouço sobretudo a voz de Ágota Kristöf, a ler em voz alta para um reduzido grupo de ouvintes, um diálogo entre duas crianças magiares falando do desentendimento e da penúria das suas vidas enquanto emigrantes. Julgo que foi em Monpellier. No final as pessoas aproximaram-se de Ágota para lhe agradecerem.  Na verdade, foi inesquecível o potencial de verdade que Ágota colocou naquela narrativa e no som da sua própria voz. Ali, em conjunto, tínhamos vivido aquilo que a Literatura pode fazer de melhor – criar uma clareira no meio da penumbra.  É isso que eu penso que uma cátedra integrada no Estudos Lusófonos pode fazer na Universidade de Genève – ajudar a multiplicar os diversos níveis de clareiras de entendimento dando a conhecer outras formas de pensar e viver. O mundo global em que vivemos precisa de viagens feitas nos dois sentidos. Neste caso, cumpre-me felicitar e agradecer os anfitriões da iniciativa. Professor Jan Blanc, Professor Abraham Madronal.
3. Este Colóquio tem por tema o poder da imagem. É um tema que diz respeito ao presente, é um tema que diz respeito à construção da nossa humanidade. Por certo que muitos dos participantes irão dar conta do papel que desempenha na construção da nossa subjectividade a imagem visual, e a imagem criada pela fala e pela escrita. Mas eu conheço o assunto, sobretudo, a partir daquilo que é a narrativa chã. O discurso que se inicia por era uma vez. Também César Aira, o escritor argentino que escreve livros breves, que valem por vários livros longos, pensou no poder da imagem através de um pequeno livro-ensaio que tem por título “Las Noches de Flores”.
Flores é um bairro que fica no centro de Buenos Aires. A história – porque este ensaio contém uma história – passa-se durante o período da grande crise económica argentina de 2010. A acção resume-se da seguinte forma - um casal de aposentados, Nando e Rosita, durante a noite, percorre as ruas do Bairro de Flores, distribuindo pizzas ao domicílio para ganharem algum dinheiro. Levados por essa nova função na sua vida, tardiamente, acabam por ter contacto com os jovens que desempenham a mesma tarefa montados em motos que conduzem em alta velocidade e se entregam a todo o tipo de distúrbios. Assim, Nando e Rosita entram num mundo que desconheciam à partida, tomando contacto com a degradação da sociedade cada vez mais violenta, e a juventude cada vez mais entregue à volúpia da dissipação e do crime. A televisão ao transmitir o que se passa potencia em espiral a violência e alimenta a degradação que envolve a própria polícia. A imagem acaba por ser parte integrante do crime. No meio desse círculo vicioso, que parece não ter fim, certa noite, os habitantes do bairro olham para o céu e percebem que os astros mudaram de posição, as estrelas alinhavam-se agora de uma outra forma. Com grande surpresa, notam que onde se encontravam as antigas constelações vê-se agora o desenho do percurso da entrega das pizzas. O caminho das pizzas está agora espelhado no céu.  Delivery. O fabulário grego que emprestou ao céu o sinal da vida dos deuses, dos homens e dos animais, no Bairro de Flores, estaria a mudar para uma nova mitologia.
Devo dizer que César Aira é sóbrio na sugestão dessa mudança. Mais do que descrevê-la leva-nos a depreendê-la. Contudo, a sugestão produzida por essa imagem pode alterar a forma de ver o mundo que nos rodeia. Pelo meu lado, agora olho par o céu e procuro ver nas estrelas outros nomes e outros mitos. Os nossos mitos actuais. E dos livros contemporâneos que leio sou levada a imaginar que imagens eles fornecem para baptizar o novo Espaço. Involuntariamente faço exercícios mentais de subversão. Penso em José Saramago e acho que por ele a nova nomenclatura do céu agradeceria que se baptizasse um polígono de estrelas como uma jangada de pedra. Nesse caso, por certo, que se estaria a fazer alusão ao desejo que os países mostram de se desprenderem dos seus parceiros para retomarem novas rotas, umas vezes para se isolarem e serem únicos e grandes novamente, transformando-se cada qual numa ilha isolada rodeada por novos oceanos. Outras vezes criando novas geografias de modo a demostrarem como, afinal, são imprescindíveis aos seus vizinhos. Em “A Jangada de Pedra” toda uma península invisível entre parceiros desloca-se ao longo do Atlântico colocando em evidência as forças de atracção e repulsa que tecem os jogos na Terra. Essa jangada merecia baptizar uma constelação no novo céu de César Aira.
Proporia que um outro polígono das estrelas representasse uma mulher-animal para simbolizar a insignificância de milhões de seres humanos, esquecidos e abandonados à sua sorte em vastas regiões do planeta. Essa constelação chamar-se-ia “A Confissão da Leoa”. Um novo polígono no céu que, ao lado do percurso da entrega das pizzas, Delivery, representasse a fome, a dura fome dos milhões que a sofrem no nosso tempo. Assiná-la-ia Mia Couto.
Proporia ainda que do livro com o título “Não se Pode Morar nos Olhos de um Gato” se criasse uma constelação que representasse um barco tumbeiro, para dizer aos que se sentem perseguidos pelo passado da escravatura que se reconhece o que aconteceu, e que a palavra conciliação, e perdão, devem ser mais altas do que o ressentimento. Na verdade, faz falta ao lado das caravelas portuguesa, de vela enfunada, sextantes e bússolas, e mortos em nome da aventura do corpo e do espírito, provenientes de “Os Lusíadas” – e que desde o século XV lá deveriam estar entre as estrelas - faz falta, pois, um barco tumbeiro no céu. - Assinaria Ana Margarida de Carvalho.  Com o brasileiro Ignácio Loyola Brandão, talvez se pudesse renomear as Perseidas, atribuindo-lhes o título do seu último romance, “Desta Terra não vai sobrar nada a não ser o vento que sopra sobre ela”, tal a história actual do Brasil representa a erosão de um tempo assaltado por figuras inenarráveis em várias latitudes da Terra. Bem poderia esse título figurar no Espaço em vez de Perseu e dos pedaços desprendidos do cometa Swift-Tuttle.  Luzes fátuas, candentes.        
E mais - Na configuração do novo céu, arrumado de outra forma, deveria estar uma multidão de estrelas, talvez uma nova Via Láctea, que se chamasse “Um Bailarino na Batalha”, para lembrar as multidões errantes dos desertos da África e da Ásia, à procura de um caminho mítico que os conduza na direcção da Europa sem a poder atingir. A Europa do lado de cá, aberta e fechada - Assinaria Hélia Correia. Por sua vez, Paulina Chiziane ajudaria a baptizar a luta das mulheres para se desprenderam da servidão do amor assimétrico, e serem elas mesmas donas das suas vidas até onde um ser humano consegue ser. Essa experiência é-lhes devida.  Esse polígono celeste representaria o percurso de milhões de mulheres subjugadas como escravas, em tantas partes do mundo, neste tempo da nova modernidade.  Essa constelação teria por nome “Balada de Amor ao Vento”. Eis as imagens que me ocorrem. Algumas delas imprescindíveis para que a mitologia europeia fique consolidada na sua diversidade, entre raiz e diáspora, espelhada no novo céu.
Muitos teóricos dizem que todo o nosso pensamento se produz por imagens.  O próprio cálculo matemático, o mais abstracto, contém imagem, ou é ele mesmo uma imagem. Mas a imagem de que falamos nesta circunstância é a da fábula, a literária, aquela que des-oculta o sentido escondido, a que abre o ovo antes de ele eclodir.  Nesse aspecto, a imagem é subversiva. A imagem faz parte da denúncia do que está oculto e do anúncio do que ainda está por vir. E que pode ser auspicioso. Porque o anúncio da fábula literária, em última instância, mesmo quando anuncia um mal, por um processo de oxímoro, aponta para uma saída, para a felicidade e para o bem. A literatura é, no seu conjunto, uma declaração de que somos seres criados à mercê da ideia de que existe uma casa para o bem.  A Literatura é a imagem de uma incessante procura da sua porta de entrada.   
Lídia Jorge."

7 abril 2022